Fragmentos do passado
Hoje decidi enfrentar os cantos entupidos de memórias que minha casa acumula. Enquanto esvaziava gavetas e arrastava móveis, encontrei uma caixa empoeirada sob a cama - um baú de Pandora doméstico. Dentro, cartinhas de anime amareladas, chaveiros de personagens que não lembro o nome, um ursinho sem um olho que jurou proteger meu sono em 2006. Objetos inúteis, disseram meus dedos ao jogá-los no lixo. Fragmentos de uma eu que insistia em não morrer, corrigiu minha garganta apertada.
Cada item era um fóssil de ingenuidade: acreditava que guardar coisas equivalia a preservar quem fui. A menina que colecionava papéis coloridos não imaginava que, um dia, alguém a chamaria de "ingênua" por acreditar que felicidade cabia em enfeites de plástico. Ela não tinha um futuro para temer, um espelho para evitar, ou a obrigação de performar "adultices". Sua única urgência era descobrir quantos gibis cabiam debaixo do travesseiro.
Ao fechar o saco de lixo, percebi que não estava descartando objetos, mas enterrando versões. Como a música de Nenhum de Nós - "O tempo passa, mas nem tudo fica" -, eu era agora a coveira de minhas próprias relíquias. Mas há um detalhe que a canção não menciona: o passado é um cadáver que sangra mesmo depois de sepultado. Cheirei o álcool das mãos, misturado ao pó das lembranças, e ri de mim mesma. Afinal, quem sou eu hoje senão uma sobrevivente de todas as que já fui?
E então, no meio da sala arrumada, senti o vazio paradoxal que só a ausência de bagagem traz. As paredes pareciam mais largas, as prateleiras mais frias. Percebi, com um frio na espinha, que limpar a casa é um exorcismo íntimo: expulsamos fantasmas, mas eles deixam marcas de umidade nas paredes. Restou a pergunta - a única que importa - ecoando entre os móveis realinhados: "O que guardaremos no lugar do que foi descartado? E quando essa nova coleção também virar pó, quem estará aqui para rir de nós?"
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